Atualizado em 05/09/2025 – 14:34
Depois de um tempo frequentando sessões de análise, me permiti ir mudando os termos psicanalíticos, de modo que coubessem na minha elaboração. Envolta à enxurrada de relações atravessadas pela linguagem — sendo ela a única via de expressão — eu tentava alcançar um pouco de ar, ou, ao menos, tatear o pé no chão com firmeza. Escavei alguns termos isolados, criando estratégias frente ao vocabulário que Lacan insiste em sustentar. Ele costuma enunciar, sob um deslize certeiro, o instante exato entre o habitar e o abandono.
Um exemplo — em nada aleatório — deste léxico ao qual me adentrei com cuidado são as fabulações sobre a falta. Antes, eu pensava que a falta era um desvio, uma falha. Por isso, me pareceu interessante eliminar a falta: não falar sobre ela, deixá-la, repetidamente, faltar. No entanto, quais excessos se multiplicam para enfeitar a falta? Desvelei, para comprovar a nitidez do meu sintoma de abundância, situações recentes, cotidianas, e outras mais antigas, estruturadas na memória.
Me senti perplexa ao perceber que a falta, a contragosto, conduziu as minhas angústias até aqui. Sobre a perplexidade diante da falta, um poema de Antonio Cicero:
Perplexidade
Não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo. (Cícero, 2025, p.109)
O poeta associa a sensação de perda destituída da ideia de desamparo. Na perda, pelo contrário, encontra-se uma direção, afinal, “talvez nem tenha” se perdido. Não há, porém, qualquer conformidade ao confrontar-se com o próprio caminho. Um estado semelhante ao que acomete o personagem do conto O espelho, do Guimarães Rosa, ao ver a própria imagem em um lavatório de um edifício público: “O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?”.
A perplexidade diante dessa “revelação” partilha da mesma natureza do espanto de Wisława Szymborska, quando diz, num texto, que ela poderia até, “entre outros” (usando aqui o título do poema), ser outra pessoa, mas, sem o espanto, seria “alguém totalmente diferente”.
Se é o espanto, a perplexidade ou o sintoma que nos fazem tão particulares neste exercício que é ser, eu não saberia dizer. Talvez eles sejam da mesma família, mas revezem a presença no almoço de domingo para garantir, assim, que haja paz. A verdade é que este estudo dos termos só expõe, de modo paralelo, um modo possível de elaborar sobre “isto aqui”. Na literatura, reconheço, através do Outro, as minhas estranhezas. Ela resguarda o caminho para que eu siga orientada por algum espanto.

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