Atualizado em 16/10/2025 – 15:34
Eu tinha um chefe muito bravo que dizia que eu precisava ser mais cascuda. Para isso, ele resolveu me mandar cobrir o velório do pai de um político. Escrevi meia página de tabloide, e o chefe bravo reclamou que o texto tinha ficado muito fúnebre. Não entendi até hoje qual o problema nisto, visto que era um velório.
Escrevi, conforme o chefe declamou, um trecho da oração de São Francisco tocando entre aspas enquanto o caixão do pai do político descia no chão do cemitério e o político chorava. Acho que ganhei ali a ideia de que enterro tinha que ser um pouco musical pra ter a carga dramática necessária.
Uns três anos atrás morreu meu amigo mais político, o Marcelo. Era um comunista gente fina, vascaíno e ateu, bebedor de conhaque e mobilizador de juventudes. No enterro do Marcelo não tocou nenhuma música enquanto o caixão descia, e eu estava chorando e fumando ao lado de uns quatro comunistas de araque como eu naqueles segundos longos antes da terra ser jogada.
_ A gente não devia cantar uma música?
_ Mas qual?
_ A internacional comunista, é claro!
_ Quem sabe?
O caixão já não tinha cordas enquanto aquele silêncio sem internacional nos tomava, e as grandes pás de terra sobrepunham nosso amigo.
_ Quem sabe está ali no caixão.
Rimos da nossa própria incompetência política em aprender tudo que deveríamos ter aprendido com nosso amigo morto. Nosso velório era carinhoso e nossa risada era cúmplice. Estávamos unidos pela saudade de Marcelo, que ainda permanece.
Já o velório do pai do político, com seus hinos católicos, estava repleto de políticos e as risadas versavam sobre qualquer assunto outro que não o morto. Nem mesmo o filho do morto, que seria candidato mais adiante, era o centro.
Nós, jornalistas, estávamos ali à caça de bastidores, desrespeitando toda solenidade do momento e da família do morto. Eu achava aquilo tudo muito feio e não fiquei cascuda como meu chefe bravo esperava.
Achei foi deselegante ver jornalista subindo em cima de tumba pra ver onde estavam localizados os fofoqueiros mais importantes do cemitério. O político parecia resignado, sabia que, sendo candidato, seu direito à paz estava revogado até depois das eleições.
Sempre foi esse o meu problema com a chatice exigida por muitos praticantes da profissão cujo diploma ostento: a falta de decoro em momentos solenes com a desculpa de que “a informação vem em primeiro lugar”.
A fofoca é muito mais humana do que o jornalismo caça-like. Ela sempre esteve presente _ como café, velhas, terços e biscoito creme cracker_ em toda sorte de velórios. Mas a fofoca em velório tem decoro, como a piada e o café. É sobre o morto. E não é fúnebre. Não deixa ninguém cascudo, mas humano, consciente da finitude e ligado aos que também choram.

Receba, semanalmente e sem custos, os destaques mais importantes do ES diretamente no seu e-mail.