Atualizado em 16/01/2025 – 11:20
Na coluna anterior prometi aos meus dois leitores e leitoras que trataria das origens racistas da famigerada guerra às drogas, pois cumprindo a promessa, afirmo: uma política que se reitera há mais de 100 anos, com resultados pífios, não pode ser considerada uma escolha equivocada, senão uma busca, um objetivo, um fim, o de controle de certos corpos. A guerra às drogas no Brasil movimenta bilhões, os sistemas de justiça criminal, via agências de criminalização, gastam bilhões de reais todos os anos e não nos sentimos mais seguros, não vemos a violência reduzir.
Primeiro é preciso ter em mente que os crimes são fatos sociais, que a criminalização de condutas muitas vezes comuns, cotidianas, são escolhas políticas. O direito é uma criação da humanidade, uma ficção que se dirige ao controle, sob o manto da legalidade e da organização da sociedade, mas que, ao fim, serve para dizer o que pode ou não, conforme a escolha de algumas pessoas. Quais pessoas criaram o direito? Quem cria as leis? Como a teoria jurídica é forjada, discutida, disputada? Muitas questões, poucas respostas, mas há suspeitas, muitas suspeitas, afinal pouco sabemos, mas suspeitamos de muitas coisas.
Com base na análise histórica do surgimento da proibição do uso das chamadas drogas, suspeitamos das origens racistas do proibicionismo e mais ainda, suspeitamos da permanência dessa origem no dia a dia. É trágica e normalizada a rotina de acordarmos e nos depararmos com mais uma operação de guerra em comunidades da periferia das grandes cidades, onde não se produz armas nem drogas, mas é o endereço favorito da atuação violenta do Estado, via BOPES, caveirões e outras forças supostamente especiais.
Data de 1830 a primeira manifestação legislativa que criminalizou o uso de drogas, a “Lei do pito do pango” previa pena de prisão ao usuário de maconha (o pito do pango) e pena de multa para quem a vendia. A maior clientela dos então comerciantes eram os escravizados, os comerciantes, brancos. Assim surge a proibição no Brasil.
Em meados do século 19 todas as drogas partilhavam de uma condição comum de produtos acessíveis a adultos, conforme regras de distribuição e de comercio, com mecanismos de arrecadação de tributos para o Estado. Então, é preciso entender que certas substâncias foram proibidas e outras permitidas, como o campo da cultura, da política as separou.
Essa separação tem duas grandes fases, após a 1ª Guerra e a 2ª Guerra, ao longo das quais se adotaram diferentes regulações e lugares culturais entre as três principais drogas legais e as três ilegais: tabaco, álcool e cafeínicos; ópio, cannabis e coca.
O tabaco foi considerado um hábito, assim como o café. O álcool, porém sofreu com regulações e pequenas restrições. Apenas na África é que houve controle internacional.
A cannabis deixou de ser uma planta terapêutica, de uso amplo e diversificado, e passou a ser outro vegetal proibido, com seus usos industriais e alimentícios também proibidos, mas cuja proibição internacional global se consolida na segunda metade do século XX.
Portanto, uma conjunção de fatores que se somaram ao longo do século XIX e XX para consolidar as distinções entre as substâncias, ente os quais os interesses econômicos, dos Estados, do ativismo, das instituições profissionais, das agências locais e internacionais fazem parte. Ainda, a visão do mundo pós colonial, as mazelas da desigualdade sócio-racial, a tragédia do orientalismo também contribuem para as diferenças contidas no proibicionismo, nas escolhas do que pode e do que não.
Foi a disputa geopolítica colonial que apontou os caminhos do proibicionismo global, que fora aportar na ONU, desde o surgimento da Organização internacional de defesa dos interesses das nações ocidentais. Por meio de diversas e sucessivas resoluções, a proibição se agigantou e virou política global.
Já nos anos 1970, os Estados Unidos inventam a war on drugs experimento de controle geopolítico disfarçado de política social de salvação. A guerra às drogas é indutora de morte, dor e sofrimento, mas é um negócio de somas multibilionárias e por isso persiste. Pela via da war on drugs, os EUA espalharam pelo globo, sobretudo na América Latina, a lógica amigo-inimigo no combate àquilo que eles nomearam o grande inimigo, as drogas. Com isso, tendo em vista que são os maiores consumidores, mas não as produzem, os EUA se imiscuíram em ser a polícia das Américas. Tudo balela para vender armas e impor uma forma de vida.
O Brasil não precisa de inspiração externa para ser perverso na atuação do Estado contra os pobres e negros. É prática cotidiana desde a invasão europeia. Aqui, a guerra às drogas tem contornos próprios, aqui a guerra às drogas abraça o genocídio do negro – conforme denunciado por Abdias do Nascimento – vira política de Estado, uma atualização do massacre dos viventes, ora pela via da polícia, pois os que envergavam a chibata hoje usam farda.
Segundo pesquisa do IPEA, a guerra às drogas tem custo social de R$ 50 bilhões por ano, e os homicídios relacionados à falida política indicam redução de mais de 04 anos no tempo de vida médio dos brasileiros. O estudo “Efeito Bumerangue: o custo da proibição das drogas” levantou informações de seis unidades federativas como Bahia, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, e apontou que as seis unidades da federação juntas consumiram R$ 7,7 bilhões dedicados à proibição.
Fica evidenciado que a guerra às drogas é uma política falida, equivocada, mas reiterada. Ao invés de resolver os problemas que ela supostamente se dedica a resolver, os amplia. A criminalização das drogas é, portanto, marcada por altos índices de violência, encarceramento em massa, desperdício de recursos e mortes, muitas mortes. Estudos apontam que cerca de 30% das mortes violentas no Brasil estão ligadas à guerra às drogas. Por fim, indago: por qual motivo uma política que causa imensos prejuízos financeiros, que causa mortes, que é indutora de caos social e violência, ainda é mantida?
Na próxima coluna trarei atualizações a respeito de decisões importantes que foram tomadas no STF e no STJ sobre drogas.
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