Atualizado em 01/12/2025 – 12:40
O capixaba que torce para o Flamengo vive o fenômeno de alguns estados brasileiros que misturam paixão, vazio e hábito. É um deslumbramento enorme, uma emoção que não cabe no peito, um envolvimento que parece maior do que a própria vida. E, no entanto, é um amor sem ligação real, uma devoção oferecida a outra cidade, a outra história, a um berço que não é o seu.
E há um ponto essencial nisso tudo: esse amor não nasceu espontâneo. Foi cultivado pela TV aberta, alimentado durante décadas pelas retransmissões do Rio. Aqui e em alguns outros estados, as afiliadas ensinaram gerações inteiras a torcer pelo que aparecia na tela, porque era o que existia. O capixaba aprendeu a amar o Flamengo como se estivesse sendo alfabetizado emocionalmente por uma antena. Não é acaso. É formação.
Mas muito antes da TV assumir esse papel pedagógico, o terreno já estava sendo preparado pelo rádio. Nas décadas em que o rádio era soberano, as emissoras cariocas eram as mais potentes, as mais ouvidas e as mais retransmitidas pelo Brasil inteiro. Quando se ligava o rádio no Espírito Santo, o que chegava era quase sempre o futebol do Rio, embalado pelas narrativas épicas e pela vibração do Maracanã. E nessas ondas que cortavam fronteiras invisíveis, o Flamengo ocupava o centro do palco. Era o time que dava audiência, que movia multidões, que garantia emoção. O país inteiro, inclusive o Espírito Santo, ouviu o Flamengo antes mesmo de vê-lo. E, quando a televisão apareceu, ela apenas coloriu aquilo que o rádio já tinha desenhado na memória coletiva.
O capixaba (discreto e pouco estimulado a ter orgulho da própria terra) encontrou no Flamengo a grandiosidade que nunca viu aqui. Falta a ele um enredo local para chamar de seu, e então ele importa um já pronto, embalado, com gols em câmera lenta, narração épica e, antes disso tudo, com as vozes de locutores cariocas ecoando num radinho de pilha. Quando o Flamengo vence, explode uma alegria adotada, como se tivesse sido herdada. É uma festa sem raiz local, uma celebração que vem do outro lado da ponte aérea, mas que aqui faz barulho como se fosse legítima.
E o exagero impressiona. No instante do gol, o capixaba abandona sua própria identidade com uma facilidade desconcertante. Vira uma versão tardia do carioca, uma imitação afetiva. Como se dissesse, sem dizer: “Perdoem-me. Eu não sei ser eu mesmo!”
E há algo de humano nisso, mesmo que desconfortável. Essa entrega revela nossa falta de pertencimento, nossa dificuldade em olhar para o próprio chão e encontrar valor ali. O capixaba ama o Flamengo porque ninguém o ensinou a amar o que é seu. Porque a vida aqui sempre foi discreta, silenciosa demais, sem espetáculo. E ele acaba usando o brilho do Rio como empréstimo de identidade.
E, no fundo, sobra uma tristeza fina nesse carnaval fora de lugar. Cada foguetório, cada buzina, cada camisa rubro-negra tremulando no vento capixaba carrega uma mensagem escondida: a vontade de ser protagonista, mas o costume de aceitar o papel de figurante na própria história.

Receba, semanalmente e sem custos, os destaques mais importantes do ES diretamente no seu e-mail.





