A história da humanidade é a história da barbárie, com muitas sociedades acreditando nas punições de afogadilho e sem julgamento. Um sujeito de nome Charles Lynch, julgador do século XVIII nos Estados Unidos, deu corpo e espírito a uma prática sombria: o linchamento de um ser humano.
Com o tempo, o sobrenome de uma pessoa se transformou em verbo — e “linchar” passou a nomear a violência física de manada, mas também uma metáfora em carne viva de algo que ainda pulsa vigorosamente nas veias da sociedade: o desejo de punir antes de compreender, de condenar antes de ouvir.
Se antes as sevícias coletivas se dirigiam aos suspeitos sem sobrenome e sem influência, hoje o chicoteamento é digital, forjado em palavras de gume afiado e golpeadas em compartilhamentos obcecados, curtidas automáticas, juízos instantâneos e cancelamentos compulsivos de impecável moral social.
As multidões mudaram de século, mas não de pensamento. Antes, se reuniam nas praças em fim de tarde, sob o sol e as bênçãos do soberano. Agora, acontecem analogicamente nos bairros pobres e digitalmente nas redes, com o dedo virtual sempre em riste, vampirizando bons sentimentos e entregando sangue aos ignorantes.
O corpo do condenado, antes amarrado aos postes das vielas esquecidas, agora é exibido em linhas do tempo, despido de contexto e cujas vestes foram rasgadas pelo frenesi do algoritmo. Os linchamentos são a tradução do medo — do linchador e do linchado —, ambos prisioneiros de intolerâncias que alimentam frustrações e se autodevoram na fome por visibilidade.
Nas redes, cada um carrega nas mãos apressadas uma guilhotina pronta a ser acionada. O poder sentenciante a um dedo. Não há investigação, processo, norma ou juiz que controle a barbárie binária. Como uma substância psicoativa, esse narcótico moderno se espalha pelo tráfego das big techs, em postagens humanas robotizadas ideologicamente, que velozmente carbonizam tudo e todos que ainda abrigam um sopro de vida, diálogos, empatia e oitiva atenciosa – afinal, o que desejamos é a instantaneidade da justiça como os reels nossos de cada dia.
No Espírito Santo, lembro-me de linchamentos reais — pessoas inocentes, mortas em nome de uma justiça improvisada. Mas também presencio linchamentos silenciosos todos os dias. E é disso que precisamos falar — do perigo de uma sociedade que julga sem processo.
Meus amigos, só uma acusação justo, com defesa e proteção do indivíduo é capaz de separar a culpa da inocência. Todo o resto — seja o linchamento nas praças ou nas redes — é era medieval com filtro digital.
E vos advirto: este pobre e monocromático artigo pode ser linchado em alguma fogueira, juntamente com seu autor. Aos linchadores, deixo as palavras do bom e velho Zé Ramalho: “Entrecortando eu sigo dentro em linha reta, tenho a palavra certa pra Doutor não reclamar!”
E você? Já lançou alguma fagulha nas fogueiras das redes? Por aqui, prefiro acender meu fogareiro para extrair um bom café.
Até a próxima coluna!
Referências do texto:
- https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2021/07/19/idoso-linchado-na-serra-es-nao-estuprou-criancas-e-foi-vitima-de-mentira-criada-por-ex-diz-policia.ghtml
- Avohai, composição de 1976 de Zé Ramalho.
- https://artsandculture.google.com/entity/charles-lynch/m01fzjc?hl=en

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