A cultura é – se não for deveria ser – a maior expressão de um país. Foi também por meio da cultura que os Estados Unidos da América se tornaram a “América”. Música, cinema, alimentação, vestuário, a propaganda estadunidense os vende incessantemente. Ainda hoje, o cinema estadunidense vende inimigos dos EUA como a antítese do que eles dizem ser, sem sê-lo. Não há goodboys na geopolítica internacional. Todos defendem seus interesses, a sua maneira.
Incomoda-me absolutamente o fato do Brasil não exercer seu incomparável poder cultural no mundo. Ao invés de sermos balizados por calças jeans e pilotos de caça inconsequentes, havaianas e Bira Presidente. Pense na alegria que pairaria sobre a terra. Deixou-nos BiraPresidente grande líder de duas das mais importantes manifestações culturais do Brasil e, portanto, da humanidade. Não me venham dizer que Elvis é mais importante de Ubirajara Félix do Nascimento (23/03/1927-14/06/2025), presidente do Cacique de Ramos e líder do Grupo Fundo de Quintal.
O debate a respeito do nascimento do samba começa na Bahia e encontra ponto comum no quintal de Tia Ciata, a grande matriarca. Ainda que a palavra samba tenha surgido no vernáculo nos idos do século XIX, sua origem, como grande parte da cultura brasileira, está naquilo que Lélia Gonzalez definiu como pretuguês, a síntese do idioma do colonizador, com as línguas de matriz africana e dos povos originários. Nosso idioma próprio é traço cultural único, de inestimável valor simbólico e real, ainda que um país continental tenha seus sotaques e variações, a linguagem nos une.
O samba não poderia existir não fosse o Brasil, o Brasil não existiria não fosse o samba. O samba, que surgira nos anos 20-30, foi revolucionado nos anos 1960-70 e no início dos anos 1980, por um pessoal que se reunia no fundo de um quintal, embaixo duma tamarineira. Não há exagero na digressão feita, não há figura de linguagem na afirmação da importância do Grupo Fundo de Quintal para a cultura brasileira.
Reunindo a vizinhança no bairro de Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro, nos anos 1960, Bira, Ubirany e Sereno criaram o Bloco Cacique de Ramos, que fora do período de carnaval se reunia para tocar samba. O bloco cresceu e se tornou em paradigma, hoje carrega milhares de foliões e milhões de seguidores em todo o país.
Além de revolucionar o samba, o grupo inventou instrumentos musicais: com Sereno veio o tantã instrumento de marcação, cuja função mimetiza o surdo. Pelas mãos de Ubirany, irmão de Ubirajara, veio o repique de mão, que o inventou. Ainda sob comando de Almir Guineto, o banjo, inspirado em instrumentos africanos, utilizado por escravizados estadunidenses no folk e no bluegrass, foi incluído no samba, recebendo nova afinação, semelhante a do cavaquinho. Além dos novos instrumentos a levada do pandeiro de Bira Presidente mudou a forma de tocar o instrumento, revolucionando a levada e a batida.
Diante dos novos instrumentos, das novas harmonias, letras e canções, o Grupo Fundo de Quintal mudou para sempre a “história dos nossos pagodes”, apadrinhados por Beth Carvalho e pelo maestro Rildo Hora, ganharam fama nacional e passaram a influenciar a cultura brasileira. A cada esquina em que se ouve uma batucada, há um pouco de cada um dos membros do grupo, há um pouco de Neoci, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Sereno, Ubirany e Bira Presidente…
Nesta encruzilhada que é o atlântico negro, a diáspora africana nas Américas encontrou “veículos de consolação através da mediação do sofrimento”, conforme nos ensina Paul Gilroy, produzindo sentidos, sons, danças e subjetividades, oriundas da violência que foi a diáspora calcada no sequestro e na escravidão. Diversas manifestações culturais brasileiras tem a origemsemelhante, malgrado constantemente apagadas, relegadas, ainda que constituam o esteio cultural do país.
Surgidas da mistura de religiões, culturas, instrumentos, harmonias e visões dissonantes do mundo, o caldeirão cultural brasileiro pode ser conformado em nosso maior poder simbólico, na medida em que representa o brilhantismo, a criatividade, o carisma e a sagacidade do povo brasileiro.
Diante do ocaso dos grandes nomes da música brasileira, fica a necessária preservação dos seus legados, das suas memórias. A tropicália, a batida no violão de João Gilberto e a bossa nova, o violão elétrico de Jorge Bem Jore o samba-rock, o Grupo Fundo de Quintal e o Cacique de Ramos, fontes de inspiração e de transgressão da música brasileira em nada perdem para movimentos culturais ocidentais. O Brazil precisa conhecer mais o Brasil, como nos alertou Aldir.

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