Atualizado em 11/02/2025 – 12:36
O ano é 2025. Em seu quinto dia, o Brasil inteiro se viu reunido diante das telas, seja da TV, do computador ou dos celulares, para acompanhar um embate internacional histórico. Mesmo desenganados, seguimos na torcida, e eis que o improvável aconteceu: um Globo de Ouro, de melhor atriz, entregue por uma Viola Davis sorridente, diretamente para Fernanda Torres, por sua atuação em “Ainda Estou Aqui” (2024), do veterano Walter Salles.
Que o cinema brasileiro é uma potência em constante ascensão criativa e técnica, a gente já sabe (lê-se a gente como uma parcela ainda pequena do público nacional).
“Ainda Estou Aqui”, por sinal, é o 24° filme de Walter, no 3° ano de indicações de filmes do cineasta ao Globo de Ouro e ao Oscar. Para além da qualidade inquestionável do longa, que aborda de forma sensível e acessível o drama da família de Eunice Paiva após a tortura e morte de seu marido, Rubens Paiva, pela ditadura militar no Brasil, temos um veterano de tamanho internacional no páreo.
Ainda assim, a própria Fernanda duvidou publicamente das suas chances de vitória. Historicamente, a indústria cinematográfica internacional privilegia produções americanas ou do norte global. Entender essa tendência é perceber que hoje a maioria hegemônica dos filmes em cartaz nas salas de cinema no Brasil é americana. Isso revela um abismo de investimento, logística e distribuição em relação a produção local, e de outros países fora do eixo norte do mundo. E essa é a mesma lógica que faz com que nós, brasileiros, saibamos tanto de cinema nacional quanto boa parte dos gringos. Ou seja, nem nós, nem eles (e muito menos o Oscar) reconhecemos o cinema brasileiro com a relevância que ele tem.
Porém, nesse 2025 recente, o Globo de Ouro já é nosso, 3 indicações ao Oscar já estão garantidas para essa mesma obra e a pergunta que fica é: O que está diferente? É impossível dissociar a maturidade técnica e artística de Walter Salles dessas escolhas. Afinal, ele já é um cineasta do mundo, com direções realizadas fora do Brasil e com relevância reconhecida e reverenciada pela crítica internacional. Seus filmes já são verdadeiros clássicos do cinema nacional para o mundo, inclusive “Central do Brasil” (1999) é a última indicação brasileira ao Oscar, filme de repercussão imensa com justo destaque à Fernanda Montenegro.
Walter consegue ser popular sem perder sofisticação ou mesmo sua marca de autor em seus filmes, o que ajuda a explicar como um enredo sobre a ditadura militar no Brasil conquistou o público brasileiro de norte a sul. E para além, Ainda Estou Aqui é um filme de forte conexão com públicos fora do Brasil.
Ao mesmo tempo, a atuação muito realista de Fernanda dialoga com mães do mundo todo e sensibiliza com crueza e poesia o público internacional. Descortinar esse capítulo da história do Brasil é também uma grande surpresa ao público internacional. Assim, Ainda Estou Aqui poderia facilmente tratar de arrochos
político-estatais do mundo inteiro, mas é do Brasil que se fala, e muito bem.
Na minha opinião, esse tema, histórico e fundamental, é outra chave para essa circulação internacional. Num momento de grandes retrocessos na política mundial, incluindo principalmente os Estados Unidos e a reeleição recente de Trump, trazer a tona uma história real latina de repressão é um aceno inegável da classe artística em favor da democracia. Um nome brasileiro nesse páreo também é um modo de afirmar oposição, mesmo que discreta, a medidas e posicionamentos tão duros vindos de Trump e outros líderes espalhados pelo mundo ocidental, regurgitando toda sorte de violência e preconceitos.
Além do mais, a academia está em reforma. Forçada, diga-se de passagem. Se em um recente 2021, a própria Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA, na sigla em inglês, responsável pelo Globo de Ouro) foi duramente criticada por não ter nenhum membro negro, gerando um boicote à sua transmissão televisionada e duras críticas mundo afora, certamente entendemos que o mundo está menos tolerante à intolerâncias e hegemonias supremacistas (pelo menos no campo da arte). Hollywood e sua indústria precisam se reinventar, rápido, para conter a perda de relevância que paira no ar. E Salles e Torres parecem ótimos nomes para conciliações sem grandes radicalismos.
O próprio filme reflete essa lugar quando elege modos tão aristocráticos para representar esse período da política nacional. Repito, relevância, talento e qualidade não faltam em “Ainda Estou Aqui”, mas o Brasil é indiscutivelmente mais diverso que a Zona Sul do Rio de Janeiro.
Sobre nossas chances reais? Podemos afirmar que a derrota definitivamente não está próxima. Nas categorias as quais fomos indicados, Melhor Filme Estrangeiro tem bons títulos, onde 3 deles tem narrativas sobre política (atenção ao precioso “A Semente do Fruto Sagrado”, do iraniano Mohammad Rasoulof), porém “Ainda Estou Aqui” tem certa vantagem em reverberação e linguagem.
Para Melhor Atriz, temos um páreo duro. Nossa Fernanda merece o prêmio sem nenhuma dúvida, mas seria bonito e justo ver uma Demi Moore madura e impecável levar essa estatueta com sua atuação em “A Substância” que é quase um docudrama sobre a relação da indústria e do capitalismo com as mulheres na contemporaneidade.
E sobre o prêmio máximo, Melhor Filme, a concorrência também é intensa, e alcançar o posto de primeiro longa-metragem falado em português da história nesse lugar já é um grande passo. No geral, torcemos em primeira instância para a derrota de “Emília Perez” por tantos motivos que caberiam em vários textos e ao mesmo tempo não merece nenhuma linha.
Independente do resultado, saímos vitoriosos pela riqueza de debate e pela amplitude de um tema tão importante da história nacional ainda encoberto e em maior evidência no cenário mundial. Porém, repito que a meta real a partir daqui é lotar mais salas de cinema com mais títulos nacionais Brasil afora para que todos os brasileiros de fato conheçam e reconheçam nosso cinema, com cada vez mais histórias que retratem o povo brasileiro em sua diversidade, nas telas e também por trás das câmeras.
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