Atualizado em 01/09/2025 – 14:33
Proliferam nos legislativos municipais uma multiplicidade de processos ético-disciplinares que visam à cassação de mandatos por quebra de decoro parlamentar. Longe de serem casos isolados de conduta manifestamente imprópria, muitos desses processos têm como alvo vereadores e bancadas minoritárias, cujas posições políticas contramajoritárias e discursos mais aguerridos passam a ser enquadrados como atos atentatórios à dignidade da instituição. A instrumentalização do processo correicional como ferramenta para o silenciamento de opositores representa uma grave distorção de sua finalidade, convertendo omecanismo de proteção da legitimidade do parlamento em uma arma para a asfixia do dissenso e o enfraquecimento da representatividade plural, pilar essencial do Estado Democrático de Direito.
O decoro parlamentar é um princípio ético-jurídico que impõe aos detentores de mandato eletivo um padrão de conduta compatível com a honra e a respeitabilidade do cargo. Seu fundamento jurídico emana do artigo 55, II, da Constituição da República, que prevê a perda do mandato para o parlamentar cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro, sendo replicado nas Leis Orgânicas municipais e detalhado nos Regimentos Internos e Códigos de Ética das Câmaras. As hipóteses mais comuns e legítimas para sua aplicação envolvem atos de corrupção, improbidade administrativa, abuso de prerrogativas, agressão física ou verbal no recinto da Casa ou a prática de atos que violem gravemente a imagem pública do Legislativo. O conceito, portanto, visa proteger a instituição, e não blindar as maiorias e governos das críticas ou posicionamentos políticos contundentes.
O julgamento por quebra de decoro, conduzido por Comissões de Ética ou Corregedorias, é, em sua essência, um julgamento político, realizado pelos pares do acusado. Contudo, essa natureza política não confere aos vereadores um cheque em branco para decidir de forma arbitrária. O processo deve ser rigorosamente pautado por argumentos jurídicos e pela estrita observância das normas previstas na Lei Orgânica e no Regimento Interno, garantindo ao acusado o direito ao contraditório e à ampla defesa. A acusação não pode se fundar na substância de um posicionamento político, por mais minoritário ou incômodo que seja, mas sim em uma conduta que se amolde, com clareza, a um tipo infracional previamente definido, sob pena de nulidade e de flagrante violação da imunidade do vereador por suas opiniões, palavras e votos.
A cassação do mandato por quebra de decoro é a sanção mais grave na esfera político-administrativa, representando a “pena capital” da vida pública de um eleito. Suas consequências são drásticas, incluindo a imediata perda do cargo e, a depender da legislação, a inelegibilidade por oito anos. Mais grave do que a punição individual, a cassação representa a supressão da vontade de uma boa parcela do eleitorado, ferindo diretamente o princípio da soberania popular. É uma medida excepcionalíssima, que só se justifica diante de atos de inequívoca e insustentável gravidade, e não para resolver divergências ideológicas ou expurgar adversários da arena política.
Quando o processo correicional é utilizado com desvio de finalidade, ou seja, para perseguir opositores em vez de zelar pela ética institucional, ele se volta contra a própria competência do Legislativo. Ao exacerbar seu poder disciplinar e violar os princípios da razoabilidade e da legalidade, a Câmara de Vereadores abre um flanco para o controle de seus atos pelo Poder Judiciário. O parlamentar cassado injustamente buscará a tutela jurisdicional, e a decisão final sobre a validade do mandato – matéria essencialmente interna corporis – será transferida para os tribunais. Nesse cenário, o Legislativo, na ânsia de calar uma minoria, acaba por enfraquecer sua própria autonomia e demonstrar incapacidade de autogoverno, erodindo a autoridade que tanto deveria prezar.

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