Atualizado em 10/10/2025 – 14:42
Alguns leitores costumam resignar a escrita de mulher ao autobiográfico. Não sei se é um hábito local, mas inúmeras vezes fui interpelada para saber quem eram as pessoas por trás de alguns de meus textos. Em Cardápio (2025), meu terceiro livro, “Carta a uma ex-amiga” e “Cadeira vermelha” são os textos mais cotados. A maioria desses leitores enxergam o que se costuma chamar de autobiográfico, estruturado pela via do erotismo. A sensação de pescoço roçando em outra pessoa é mais vívida e importante que as violências físicas e simbólicas ressaltadas em meus textos. Tem de ter um falo, se possível, ereto, que direcione a atenção e impulsione a fala. Como naquele poema “mulher de vermelho”, da Angélica Freitas:
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho.
Freitas, 2017, p. 13.
Mais importante que reconhecer as estruturas que violam os corpos de mulheres em nossa cultura é erotizá-los, reafirmando, assim, o processo de violência. Enquanto esses leitores investigam sobre as supostas aparições incluídas em meus textos, não se lançam aos riscos constituintes da produção da linguagem. O dispositivo que se usa, quando se produz isso que alcunham de autoficção, é o que temos em comum: a realidade. No entanto, centrada em experiências que podem até soar como individuais e íntimas, mas que revelam sensações e vivências coletivas. Exemplo disso é o tema da maternidade, que incorporo aos meus textos, mas o assunto parece não ser de grande interesse para alguns leitores. Pelo contrário, em “Carteirada” exibo uma suposta entrevista que remonta esses lugares literários em que nos preparamos com antecedência para estar e, no final, aos entrevistadores, o que importa é a nossa idade. Mal sabia eu que essa cena se repetiria posteriormente — e na realidade, o que é ainda mais angustiante.
Autoficção, escrita de si, autobiografia, e quais sejam os nomes que teimam em resignar a nossa poética. O desejo da mulher de vermelho não cabe nem no vestido nem no rótulo que a nomeia. Clarice Lispector diz que “o instante é semente viva”. Escrevemos a fogo sob o instante, nos inscrevemos, sinalizando o caminho, e não é pra gente voltar depois: é pra deixar que o leitor decida se apaga o feixe ou se colabora com o incêndio.
Vila Velha recebe neste fim de semana a FLINC – Feira Literária Internacional Capixaba, que está com uma programação gratuita e imperdível. No dia 11, sábado, lanço meu terceiro livro, Cardápio (2025), às 19h, no Parque da Casa do Governador. Achei a ocasião propícia para expor algumas reflexões, fruto da pesquisa que desenvolvo no doutorado em Letras (PPGL/UFES) e das vivências como escritora neste estado, que, embora receba uma grande feira literária internacional, continua conservador nos costumes.

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