Atualizado em 04/12/2025 – 14:15
Achei uma foto do gato demoníaco. É uma pintura feia e assustadora que ficava na parede da casa em que eu morava em 2018. O gato não tem íris e pupila, e também não sorri: mostra a língua e joga arco-íris como raios pelos olhos. O gato demoníaco é, para mim, uma memória feliz.
Eu morava num quarto sem janelas em que as paredes eram finas e eu ouvia o que faziam os vizinhos. Tinha também essas pinturas, o gato demoníaco e uma mandala gigante com “Jai guru deva om” escrito em volta. A cama era dura e eu não tinha um guarda-roupa. Eu amava aquele quarto, aquele gato feio, aquela casa de paredes finas.
Pela foto do gato eu lembrei de todo o resto: a mesa, os amigos, os livros, a roupa que secava muito devagar, os estudos de vitaminas do Matheus, a alegria da Amanda, a grande quantidade de passadas de vassoura na casa suja de mato e jardim.
Lembrei até de quando teve a greve dos caminhoneiros e a gente ficou sem gás.
O gás custava R$ 70 reais a botija, em média, mas durante a greve dos caminhoneiros estava por R$ 200 e só tinha em Sapirara, um povoado longe que demandava carro pra chegar (e vale dizer que não tinha gasolina na vila, também).
Como a gente tinha uma comunidade, a gente ia e levava alguma coisa pra almoçar na casa dos outros. A Flávia tinha gás e cebola (artigo raro, quase luxo). Estava tão difícil chegar legumes que ficamos felizes quando achamos berinjela na feira.
Também viramos especialistas em comida sem fogão. Esquentamos água pela lata de sardinha até comprarmos um mergulhão para café. Matheus fez hamburguer artesanal na churrasqueira, a gente fez até quiabo na misteira.
E o gás nada de chegar, e a greve dos caminhoneiros nada de acabar. Depois acabou e nós ficamos um bom tempo sem comer carne. Tínhamos medo dos produtos químicos que poderiam ser colocados pra disfarçar que a carne estava estragada.
Ganhamos uma flexibilidade na dieta, aprendemos muitas receitas novas por termos medo do que estávamos acostumados. Também começamos a estudar as coisas: alface é calmante, tomate faz bem para a pele, quiabo previne candidíase.
E crescemos. E nos acolhemos. E o gato demoníaco continuava jogando arco-íris na parede enquanto a mandala chamava uma meditação. E quando tocava Maria Bethânia a gente sabia que era hora de abrir um vinho. Ou talvez o vinho já estivesse aberto.
Reclamávamos de chefes, instituições, injustiças. Mas também nos juntávamos e lavávamos roupa, íamos à praia, louvávamos a abundância das coisas. Ganhávamos presentes aleatórios e dividíamos nossas berinjelas, cebolas, gases, conhecimentos.
Era engraçado. A senha da internet era abundância e nunca nada faltava. Então eu vejo a foto do gato e acho muito engraçada. É como se a Amanda e o Matheus me abraçassem e o gato nem fosse feio. (mas é)

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