Atualizado em 12/12/2025 – 15:03
Dezembro de 2025, fim de ano. Do ano em que faço 20 anos de advocacia criminal, 20 anos entrando e saindo de presídios, cadeias, fóruns, tribunais. Petições, recursos, vistorias, visitas. Escuta atenta, muita escuta. Idas e vindas. Mas uma imagem sempre me dilacera. A que ilustra a coluna do mês. Está pintada uma borboleta na antessala do Complexo Prisional do Espírito Santo, o Centro de Triagem de Viana. Todos os homens presos nos municípios de Vitória, Serra, Cariacica, Viana, Vila Velha e outros passam por lá, ficam por lá muitos dias, meses. E lá está a borboleta. Lépida, faceira. O bicho associado a Iansã foi cantado por Benito de Paula: “Eu sou como a borboleta, tudo o que eu penso é liberdade (…)”, mas não. Ao sistema prisional capixaba, a borboleta representa boas-vindas ao cárcere, a uma das piores invenções da humanidade, a prisão.
Nos sádicos olhos de quem a pintou, de quem a idealizou, ter ali uma borboleta não deve significar renovação, outro símbolo atribuído ao leve bichinho, mas alguma troça, uma evidente provocação: “aqui se inicia o sistema prisional”, tome aí uma borboleta pintada para que entendam: não pensamos na sua liberdade nem no seu bem viver, isso aqui é apenas um depósito de humanos, ou nem tão humanos (aos olhos de quem tem tara pelo aprisionamento).
Lembro-me bem da Penitenciária de Argolas, em Vila Velha, lá no início dos anos 2000 – o fedor podia ser sentido da calçada –, quando fazia vistorias, atendia presos e familiares, pela Defensoria Pública do Espírito Santo, onde estagiei e aprendi muito mais sobre o Sistema de Justiça Criminal do que os longos cinco anos de faculdade. Foi trabalhando no projeto “Justiça sem Amarras”, da mesma instituição, que minha personalidade questionadora e aguerrida se encontrou com a perene insustentabilidade do sistema de justiça criminal. A Defensoria tinha parcas instalações, computadores jurássicos, falta de ar-condicionado, faltavam insumos básicos, mas sobrava vontade, coragem, altivez. Muito diferente de outras instituições, com seus orçamentos bilionários e atroz distanciamento da sociedade a quem pretensamente servem.
Hoje a Defensoria tem orçamento muito superior àquela época, mas segue desvalorizada, se comparada com as demais instituições do sistema de justiça. Não interessa ao Estado reforçar a defesa dos desvalidos, é mais rentável encher os cofres daqueles que de fato exercem poder, daqueles que podem ameaçá-los pela força da caneta. Então, as tenebrosas transações, ao arrepio da Constituição, permanecem legando à defesa dos pobres, pelo Estado, orçamento, poder e força institucional inferiores. Afinal, no Brasil, o Estado serve aos mesmos desde as Ordenações Portuguesas, com poucas variações e alternativas de mobilidade social.
Se uma borboleta se renova, se transforma, entra no casulo lagarta e sai borboleta, livre para voar, o Estado brasileiro segue sua missão mais bem-sucedida: a de manter a supremacia branca inabalada, centrando poder, dinheiro e agenda. O poder de agenda é fundamental, pois aponta caminho, direção, projeto. Quem pode planejar, agendar e executar pode muito mais do que quem aguarda, luta, sobrevive. Mas não pode tudo. Tenho muita fé no povo brasileiro, é uma crença irremediável, ainda que prenhe de crítica e cansaço. Minha fé na nossa gente não me permite desistir, tampouco pensar em escrever algo que não diga respeito à desconstrução do projeto de nação tocado pelos vencedores.
Que em 2026 a gente contabilize mais vitórias que derrotas e o povo brasileiro entenda que, apesar de fundamental, o voto é apenas uma das etapas da democracia participativa, essa coisa etérea, distante de quem pouco recebe e é muito sugado. Se a educação dá caminho e chão, a politização é indispensável para a melhora coletiva. É preciso entendimento a respeito do que nos cerca, da sociedade em que estamos inseridos e, sobretudo, consciência de que os donos do poder só agem em benefício próprio.
Na sociedade brasileira, é muito difícil sair de larva para borboleta, mas é possível, e uma das principais formas é pela via do estudo, da educação. Por isso, digo a você que me lê e também a mim: não desista da sua trajetória, dos seus estudos, dos livros. Seja crítico, mas também amoroso, afinal: “Você que me vê voando, como a paz de uma criança, você sabe a minha idade, eu sou sua esperança.”
A coluna deve ser lida ao som de Benito de Paula: “proteção às borboletas.”

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