Atualizado em 31/01/2025 – 10:21
CLÁUDIA COLLUCCI
A exposição a traumas na infância, como violência física e sexual, luto, negligência ou mesmo presenciar um crime ou acidente, está fortemente associada ao desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em adolescentes que vivem em países de baixa e média renda.
A conclusão é de um estudo inédito realizado por pesquisadores do Reino Unido e do Brasil e que foi publicado nesta quinta-feira (30) na revista científica The Lancet Global Health.
Os resultados são baseados na coorte de nascimentos de Pelotas (RS), cujo projeto original teve início em 1982 e estuda o surgimento de doenças ou agravos ao longo da vida. A cada 11 anos uma nova coorte é iniciada e, atualmente, existem quatro coortes ativas (1982, 1993, 2004 e 2015).
Os resultados do estudo se referem à coorte de 2004, com 4.229 adolescentes (51,9% homens, 48,1% mulheres), que foram acompanhados até os 18 anos.
A exposição ao trauma afetou 81,2% desses jovens. Cerca de um terço (31%) de todos os transtornos mentais foi potencialmente explicado pela exposição a esses traumas. É a primeira vez que se quantifica isso.
Quanto maior o número de diferentes tipos de traumas vivenciados, maiores foram as chances de os adolescentes desenvolverem problemas de saúde mental, especialmente transtornos de ansiedade, de humor e de conduta.
Segundo a professora da USP (Universidade de São Paulo) Alicia Matijasevich, uma das autoras do estudo, o trabalho ajustou a associação do trauma para diversas variáveis, por exemplo, transtornos psiquiátricos já presentes na infância e condições socioeconômicas.
“Mesmo ajustando para todas essas características, o trauma é responsável por um componente muito importante dos transtornos mentais na vida adulta.
Um dado importante, explica a pesquisadora, é que tanto um trauma vivenciado, como um abuso sexual ou agressões físicas, como o trauma percebido, ou seja, a criança que percebe maus tratos à mãe, são importantes para gerar transtornos mentais na vida adulta.
“Fundamentalmente, transtornos de conduta e transtornos emocionais. Não gera outro tipo de transtorno, por exemplo, o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade).”
Para a pesquisadora Megan Bailey, primeira autora do trabalho, as descobertas mostram que o trauma na infância tem um impacto duradouro na saúde mental, particularmente em países de baixa e média renda, onde ele é muito comum.
“Em conjunto com estudos anteriores que também demonstraram esses efeitos tanto em jovens quanto em adultos em países de alta renda, fica claro que a exposição a traumas na infância é um fator de risco chave para o desenvolvimento de problemas de saúde mental de forma geral.”
Segundo Alicia Matijasevich, uma das orientadoras de Bailey, as descobertas abrem novos caminhos para estratégias que possam reduzir o risco das crianças a esses traumas.
“As intervenções podem ser tanto do ponto de vista populacional, evitando a violência, como do ponto de vista individual, detectando precocemente o trauma, tratando-o e evitando que desenvolva transtornos mentais na vida adulta.”
Em 2017, Pelotas liderou um programa de intervenção (Pelotas Pacto Pela Paz) com a meta de reduzir o crime e a violência urbana por meio de projetos nas áreas de saúde, educação e sistema de justiça criminal.
As avaliações iniciais do programa mostraram uma redução nas taxas de crimes violentos, mas outros estudos são necessários para determinar se o programa também tem potencial de reduzir a prevalência de problemas de saúde mental entre os jovens.
“Se a gente diminuir a carga de violência na cidade [intervenção populacional], vai diminuir também a carga de violência que é percebida, que é vivenciada pela criança e também que é percebida por ela”, afirma a professora.
Na opinião de Matijasevich, também há muito o que fazer em relação às intervenções individuais ou familiares, por exemplo, políticas para diminuir a violência doméstica. “Ao diminuir a carga de violência por parceiro íntimo, a criança percebe menos violência dentro do núcleo familiar e vai vivenciar menos violência.”
A questão é que muitas dessas intervenções são de tempo limitado. Em geral, duram o tempo do estudo. Mesmo que tenham resultados positivos, tendem a não ter continuidade porque não há financiamento, por exemplo.
Graeme Fairchild, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Bath e também coautor do estudo, reforça que o estudo é inequívoco em demonstrar que o trauma na infância tem consequências de longo prazo na saúde mental.
“O risco de problemas de saúde mental foi observado de maneira generalizada, com os jovens expostos a traumas apresentando maior risco de depressão, ansiedade, e comportamento antissocial grave.”
Segundo Matijasevich, uma vez que uma vez que a criança sofreu um trauma, seja um abuso físico ou sexual, ou o luto de um familiar próximo, é preciso detectar precocemente essa situação e tratá-la adequadamente.
“O problema é que para todas essas intervenções a gente precisa de recursos, de pessoal. Não tem por que ser um psicólogo, um psiquiatra, mas tem que ser pessoal que esteja capacitado para realizar essa intervenção.”
Uma iniciativa que desenvolve um trabalho nessa linha é o Proalu (Programa de Acolhimento ao Luto), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que trata o luto infantojuvenil. Um grupo de psicólogos e psiquiatras voluntários lança mão de livros, jogos de emoção, brincadeiras e conversas para ajudar crianças a entender e a acomodar os sentimentos gerados por mortes de pessoas próximas, como pai, mãe, irmãos e avós.
A Folha de S.Paulo relatou o caso de um menino de oito anos que manifestou um quadro psicótico durante o tratamento de luto pela morte do pai. “Ele retrava a vida antes de perder o pai com desenhos bonitos e coloridos, e, depois da morte, tudo em pedacinhos espalhados. Passou a ouvir vozes de comando, dizendo que ele tinha que morrer para ficar o pai. Com um mês de psicoterapia, ele foi melhorando. Nós o acompanhamos por mais seis meses”, contou a psicóloga Samantha Mucci.
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