Atualizado em 06/12/2025 – 10:13
A abertura das vendas de ingressos para a edição 2026 do Festival Movimento Cidade não foi apenas um anúncio operacional. Ela funcionou, na prática, como um ponto de inflexão simbólico na relação entre o festival e parte significativa do público que o construiu ao longo dos anos.
Ao anunciar dois dias pagos e apenas um gratuito, em venda antecipada e sem divulgação de atrações, o Movimento Cidade tocou em um nervo sensível: sua própria identidade. A reação nas redes sociais não foi pontual, nem restrita a um grupo pequeno. Foi volumosa, consistente e atravessada por um mesmo sentimento: frustração.
Não se trata apenas de “ser contra pagar”. Muitos comentários deixaram isso claro. O incômodo maior está na percepção de ruptura entre discurso e prática. Um festival que nasceu sob as bandeiras de acesso, ocupação popular da cidade e democratização da cultura passa, agora, a operar sob uma lógica que parte do seu público lê como seletiva.
O deslocamento é sutil, mas profundo. Antes, a barreira era a fila. Agora, para dois dias inteiros, a barreira passa a ser o preço. E o valor, independentemente de quanto seja, funciona como um filtro social, pois inevitavelmente exclui uma parcela da população, especialmente pessoas de baixa renda. Isso redesenha quem entra, quem fica de fora e quem passa a ocupar o espaço.
A venda “às cegas” acentuou ainda mais esse estranhamento. Não é apenas comprar antes. É comprar sem saber. Em grandes festivais privados, essa prática já é naturalizada, como acontece em eventos como Rock in Rio, Lollapalooza e The Town, que operam plenamente sob lógica de mercado. No Movimento Cidade, no entanto, ela gera ruído exatamente porque o evento nunca foi apresentado ao público como um produto de mercado tradicional. Ele sempre foi apresentado como um pacto com a cidade.
Esse pacto, hoje, está sendo questionado.
Há também um ponto sensível que aparece com frequência nos comentários: a relação entre verba pública, patrocínio e cobrança de ingresso. Mesmo sem dados conclusivos sobre o financiamento da edição de 2026, a percepção de falta de transparência alimenta desconfianças. E, em projetos culturais que se sustentam na confiança da comunidade, a percepção vale tanto quanto os números.
Por outro lado, ignorar a dimensão financeira de um festival desse porte seria ingênuo. Estrutura, artistas, segurança, logística, técnica, produção e operação custam caro. E não há escapatória: sustentabilidade econômica virou pauta central na cultura brasileira.
O problema não está apenas na cobrança. Está no modo como essa cobrança reposiciona o festival no imaginário coletivo.
Quando um evento cresce com base em uma lógica de acesso popular e depois passa a operar com filtros econômicos, o conflito é inevitável. Não por maldade, mas por coerência. O público sente quando a regra do jogo muda.
É justamente por causa da história construída pelo Movimento Cidade que a reação é proporcional à importância do festival. Ele se consolidou como o maior festival de artes integradas do Espírito Santo, revelou artistas, formou público, ocupou a cidade com diversidade e criou um imaginário coletivo que pode ultrapassar gerações. Nada disso teria sido possível sem o trabalho contínuo da equipe que está por trás do projeto, responsável por tirar a ideia do papel, sustentar o festival ao longo dos anos e fazê-lo crescer em estrutura, alcance e relevância. Reconhecer esse percurso é fundamental.
Talvez o maior risco do Movimento Cidade neste momento não seja perder público no curto prazo, seja perder identidade. Porque festivais parecidos existem muitos. O que diferenciava o MC era exatamente aquele caos bonito da cidade inteira tentando caber dentro dele.
A reação registrada nas redes não é apenas sobre ingresso. Ela fala de pertencimento, de memória afetiva, de um sentimento coletivo de “isso também era meu”.
Agora, resta saber como a organização vai dialogar com essa tensão. Silenciar pode ser lido como distanciamento. Explicar pode não resolver tudo, mas mantém aberta a ponte que, hoje, dá sinais de desgaste.
No fim das contas, todo festival carrega escolhas que vão muito além da programação. Ele define quem entra, quem participa, quem fica do lado de fora e quem passa a ocupar os espaços da cidade.
E foi exatamente esse debate, sobre acesso, pertencimento e mudança de público, que começou a ganhar força nas últimas horas.

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