Atualizado em 15/10/2025 – 12:10
A escrita, para mim, surge primeiro dentro. Em silêncio. Matuto o texto, penso nas palavras, na ordem de alguns parágrafos. Ouço música, leio livros, me exercito e, durante tudo isso, o texto vai ganhando vida. Quando venho ao computador ou vou ao caderno, a tarefa é mais de sistematizar e botar para fora o que já estava meio pronto aqui dentro. Hoje foi assim, mais uma vez.
Estava ouvindo e assistindo à belíssima canção e interpretação do talentoso Jota Pê em sua música Ouro Marrom e fui tomado por um choro profundo, forte. Entendi que o choro de rancor, que a pele marrom, se for preciso, deve subir o tom.
É o que tenho feito; é o que muitos de nós temos feito. Todos os textos que escrevo têm o mesmo fim: contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária, com equidade, justiça social e reparação histórica aos escamoteados, aos que têm a pele marrom, preta, parda, amarela. Vivo, me mobilizo, produzo, escrevo e luto para tentar deixar um traço de contribuição à sociedade.
Mais uma vez estamos diante de atrocidades e vilanias da branquitude. O projeto atual é a classificação de traficantes de drogas como terroristas. Tem-se visto, no discurso de alguns partidos políticos e de seus ideólogos, a escalada dessa sandice. Para explicar um pouco melhor os fins não declarados dessa possibilidade, é preciso andar alguns passos atrás.
Os Estados Unidos, no cumprimento da missão que se autoimpuseram de ser a polícia do mundo, nos idos dos anos 1970, passaram a se classificar como vítimas do tráfico internacional de drogas, como se o seu mercado consumidor — o maior do mundo para cocaína — fosse acossado pelo pó branco vindo da América do Sul, via México e outras fronteiras.
Ao se posicionarem como vítimas do próprio desejo, vítimas da própria construção socioeconômica, precisaram apontar culpados pela epidemia de vício em substâncias estimulantes. O que esperar de uma sociedade que sequer tem acesso à saúde universal, e que hierarquiza corpos e pessoas conforme o poder de consumo? Pouca coisa boa pode sair daquele lugar. É sintomático que estejamos destruindo o planeta sob liderança daquela nação — afinal, espoliação, exploração, ignorância e apetite desmedido são traços marcantes da pretensa terra da liberdade.
Então me socorro em uma personagem indispensável ao conhecimento crítico da sociedade estadunidense, Homer Simpson. É dele a frase: “Se a culpa é minha, eu a coloco em quem quiser.” Assim seguiram os Estados Unidos na criminalização da América do Sul, por supostamente fornecer a mercadoria objeto do seu desejo. Se eu quero, a culpa é de quem me vende.
A tétrica lógica tem como pano de fundo — como objetivo não declarado — o controle sobre as múltiplas reservas naturais, biológicas, minerais etc. da América do Sul, continente ainda hoje lido como colônia pelo Ocidente, apesar dos notáveis esforços das nações na busca por emancipação e reconhecimento internacional.
Os Estados Unidos criaram a DEA, sua força policial contra as drogas — obviamente derrotada desde sua criação, ao menos se tivermos em mente apenas seus objetivos declarados. Os objetivos não declarados, esses têm vencido: na forma de venda de armas, de ocupação territorial, de espoliação, de manipulação, de golpes de Estado, espionagem e contrainteligência.
Os Estados Unidos espalharam pela América sua doutrina: a war on drugs, experimento de controle geopolítico disfarçado de política social de salvação. A guerra às drogas é indutora de morte, dor e sofrimento, e também um negócio de somas multibilionárias — por isso persiste. Pela via da war on drugs, os EUA espalharam pelo globo, sobretudo na América Latina, a lógica amigo-inimigo no combate àquilo que eles nomearam o grande inimigo: as drogas. Com isso, tendo em vista que são os maiores consumidores, mas não as produzem, assumiram o papel de polícia das Américas. Tudo balela para vender armas e impor uma forma de vida.
Ao classificar e enquadrar traficantes como terroristas, convida-se os Estados Unidos a intervir, pois, ora, são eles os grandes combatentes do terrorismo no mundo. Se antes exportaram a war on drugs, sua grande tacada seguinte foi a guerra ao terror, inaugurada por Bush filho após os atentados de 11 de setembro.
A ignorância histórica, sociológica e geopolítica da direita raivosa não basta para explicar a aposta na classificação dos traficantes de drogas como narcoterroristas. Muitos de seus assessores e “pensadores” têm esse conhecimento, mas se escoram nessa possibilidade por razões menos racionais: apostam, por conseguinte, na mobilização das emoções da população, jogam suas fichas no populismo penal midiático, disseminam o pavor; afinal, uma sociedade apavorada exige menos e é mais facilmente controlada.
Nesse caminho, declarar traficantes como terroristas é também uma presepada dogmática. Afinal, o crime de terrorismo já é tipificado no Brasil, no art. 2º da Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo):
“O terrorismo consiste na prática, por um ou mais indivíduos, dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”
Não escrevo, obviamente, em defesa dos traficantes de drogas, que de fato causam imensos transtornos ao país e, sobretudo, às pessoas sugestionadas por suas atuações e ocupações territoriais. Todavia, é fundamental recordar que a proibição gera o tráfico — não o contrário. Portanto, os mesmos criadores da guerra às drogas, diante do seu fracasso retumbante, buscam novas formas de retomar o discurso e o controle da narrativa: o narcoterrorismo.
É sabido, ainda, que as duas principais organizações de traficantes de drogas do Brasil, com vasta atuação internacional, surgiram sob o apoio do Estado brasileiro. Apoio, sim. Se foram criadas dentro do sistema prisional como consequência dos abusos cometidos pelo Estado e foram, por décadas, ignoradas também por ele, seu crescimento exponencial se deu com incentivo — muitas vezes em parceria com representantes do próprio Estado — e com o estímulo de quem seguiu cometendo os mesmos erros que impulsionaram o surgimento dessas organizações, hoje espalhadas por todo o setor dito produtivo do país.
Com efeito, a busca da direita representante da branquitude pelo tratamento dos traficantes de drogas como terroristas é mais uma mexida no tabuleiro do genocídio do negro. Não satisfeitos com a guerra às drogas, agora movem seus cavalos na direção do tratamento como terroristas, transformando comunidades carentes, favelas e subúrbios em territórios-alvo de medidas de guerra. Matar os indesejáveis ganhará um alívio: são terroristas, matem.
Nossa pele marrom, contudo, seguirá subindo o tom, seguirá se insurgindo contra as múltiplas formas de nos matar. Afinal, como nos ensina nossa mestra Conceição Evaristo: “combinaram de nos matar, a gente combinamos de não morrer.”
Escrevo em homenagem aos parentes, amigos, familiares eternamente enlutados pela violência, pelo terrorismo de Estado, pela desigualdade, pelo racismo. Em defesa das vítimas da branquitude cis-heteropatriarcal, a vocês, meu abraço e minhas homenagens.

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