Atualizado em 25/07/2025 – 08:29
Ney Matogrosso nunca foi apenas um cantor: ele é um corpo em movimento, uma ideia em constante reinvenção e, sobretudo, um artista que atravessa linguagens. Prestes a completar 84 anos, ele foi o homenageado nacional na 32ª edição do Festival de Cinema de Vitória (FCV), na noite desta quinta-feira (24), por sua contribuição para o cinema brasileiro. Ney reuniu, ao longo das décadas, um repertório de personagens e experiências em obras que, assim como sua música, questionam normas e expandem fronteiras.
Como ator, Ney Matogrosso participou de quase vinte produções cinematográficas, incluindo filmes de ficção e documentários. Seu papel mais emblemático foi como o Bandido da Luz Vermelha em Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), dirigido por Helena Ignez e Ícaro Martins, onde vive o personagem já envelhecido e reflexivo, enquanto o filho, interpretado por André Guerreiro Lopes, assume os crimes. Ney também atuou em Caramujo-Flor (1998), de Joel Pizzini, e participou de documentários como Viramundo (2013), com Gilberto Gil, e Ney – À Flor da Pele (2021), de Felipe Nepomuceno.
Mais recentemente, Ney teve sua história contada no filme Homem com H (2025), dirigido por Esmir Filho, com Jesuíta Barbosa no papel principal. O longa acompanha sua trajetória desde a juventude até a consagração como artista singular e símbolo de liberdade. Segundo Ney, tudo o que é mostrado no filme realmente aconteceu — ele fez questão de que a obra fosse absolutamente fiel à sua vida, sem esconder conflitos, amores, dores ou escolhas difíceis. “Não queria um filme mentiroso”, afirmou. O resultado é um retrato profundo e verdadeiro de uma das figuras mais ousadas da cultura brasileira.
O VIXFeed participou da entrevista coletiva com o cantor, que aconteceu em Vitória nesta quinta-feira (24), algumas horas antes da solenidade de homenagem. Na oportunidade, Ney Matogrosso explicou que está vivendo uma fase de falar sim para muitas oportunidades, contou como o cinema se entrelaça com sua trajetória e como ele vê esse lugar que conquistou diante das câmeras — tão legítimo quanto o dos palcos.
Entrevista
Já que estamos em Vitória, fale qual a relação com a cidade. Você já veio muito para Vitória?
Já vim muitas vezes. Vim a Vitória pela primeira vez talvez nos anos 70, não tenho certeza. Eu conheci muitas pessoas, porque quando eu saí de Brasília, eu fui para um festival de inverno em Ouro Preto e lá eu conheci muitas pessoas que são daqui. Fiquei amigo delas, então eu vim muitas vezes aqui, muitas vezes mesmo.
No Espírito Santo, você conheceu o Mosteiro Zen Budista, em Ibiraçu, certo? Conte um pouco desta história
A história do Mosteiro foi que eu vim. Fui visitar os amigos e fui parar lá no Mosteiro, fiquei seis, cinco dias, talvez, só que eles não exigiam de mim as formalidades que eles exigem para quem está lá, né? Eu dormia até tarde, eu não precisava acordar às cinco da manhã, sabe? Mas eu gostei muito do lugar, do ambiente. Me convidaram para passar um dia lá. E pronto, eu fui.
Fale um pouco do significado do ‘Homem com H’ na sua trajetória profissional, mas também pessoal. Como está sendo todo esse carinho que você tem recebido de volta?
Virou um turbilhão, virou um turbilhão. Se eu trabalhava dez, estou trabalhando… Então, é uma coisa assim, que às vezes até me confunde, mas é uma resposta muito positiva, sabe? Quer dizer, a minha comunicação com as pessoas é só pelo Instagram. Então, eu recebo informações muito valiosas, como por exemplo, que elas, depois que viram o filme, tomaram coragem de viver a liberdade. Para mim, é muito bom ouvir isso, porque eu sou uma pessoa que sempre vivi a minha vida, né? Independente de mundo, de autoridade, de pai, né? E fico muito feliz de poder estimular as pessoas a assumirem a sua verdade. Porque a gente tem que viver com a nossa verdade, não é isso? Não podemos viver subjetivamente. Não somos metidos à verdade de ninguém, nem à vontade de ninguém. Nós somos, cada um, um universo e temos que manifestar isso.
Conte sobre a cena que aparece em Homem com H, quando homens da censura vão até o seu camarim e você os recebe nu.
Olha, era isso. Eu tinha ido pro Nordeste e já tinha feito show em Teresina, já tinha feito um monte de coisas. Fomos pra Recife e eu fiz exatamente o mesmo show, né? E tinha uma cena… Eu tinha um espelho oval que ficava atrás de mim e eu tinha uns enfeites. Eu sempre tenho umas coisas penduradas. E aí tinha um enfeite, que era uma coisa que tinha uns objetos de metal pendurados. E aí eu descobri que se eles jogassem a luz no espelho e eu virasse aquela luz para mim, eu projetava uma sombra na parede. Mas isso eu fazia em todos os shows. E eu mexia propositalmente aquela coisa na sombra e fazia assim. Era tudo pensado. Não é um acaso, sabe? É tudo pensado. E aí o cara cismou com isso. E aí ele veio me dizer que o show era muito libidinoso e eu disse ‘sim, é libidinoso propositalmente’. Isso é um teatro… Eu quis fazer um teatro de revista, né? E aí, ele implicou com aquilo e perguntou quantas vezes eu quantas vezes eu mexia o pélvis. E nessa hora, eu estava nu sim, porque quando eu saí do palco, me disseram que tinham esses homens querendo falar comigo e eu disse ‘tá bom, diz para eles que eu vou tomar um banho, vou me preparar para recebê-los’. Dei canseira e quando eles entraram, eu estava nu, só que não era sentado assim de frente, eu estava numa cadeira que parecia uma cadeira de barbeiro, com a perna levantada em cima da bancada, e aí eles entraram e eu fiquei ali, nu, deitado ali. Eles tomaram um susto quando me viram e eu fiquei ali, como se nada tivesse acontecendo. E aí, quando eles disseram que era muito libidinoso, que eu disse que era propositado, um deles disse ‘lá para o Sul pode ser que as pessoas aceitem, mas aqui no Nordeste, não’. Aí eu joguei na cara deles. Eu disse, ‘pois é, mas eu estou vindo de Teresina. Fiz uma semana de show em Teresina e não tive esse problema lá’. Aí ele pediu que eu fizesse menos vezes. Mas não, não fiz.
Desde o início, seu corpo foi grande instrumento de expressão e de transformação. Como é que isso foi mudando na sua relação com as suas performances ao longo do tempo e como é continuar se expressando através do seu corpo hoje?
Olha, a minha maneira de me expressar é com o meu corpo também. Eu sou um cantor, mas o meu corpo sempre foi muito importante. Não é mais igual ao que era, porque no começo da história era desacato à autoridade. E que hoje em dia não é mais. Hoje em dia eu já fui absolvido, as pessoas sabem que eu sou desse jeito. Mas ali, naquela hora, era isso. Eu recebia muitos recados da censura, muitos recados de Exército, sabe? Para que eu não me excedesse. Quanto mais diziam para eu não me exceder, mais eu me excedia. Porque é a maneira de me expressar.
Você fez quatro filmes com a Helena Ignez, mas trabalhou também em dois filmes muito importantes do Joel Pizzini: o Caramujo-Flor, que é considerado um poema e um dos 100 maiores curtas da história do cinema brasileiro, e o Olho Nu, que ele me contou que foi feito com sobras do Caramujo-Flor de tanto que vocês tinham gravado. Conte um pouco dessa história do Caramujo até o Olho Nu.
Olha, nós fomos pro Pantanal de Mato Grosso, na verdade não seria eu o ator principal, era o Rubem Araújo, só que o Rubem não pôde viajar naquela época. Mas aí meu papel foi aumentando porque eu tinha disponibilidade para viajar e a gente começou a fazer mais coisas do que estava previsto para eu fazer. Eu adorei, eu adorei, imagina, ir lá para o meio do Pantanal para fazer. Nós fomos para o Mar de Xaraés, que para quem não sabe, é um lago imenso que tem no meio do Pantanal de Mato Grosso e com água salgada. Existe uma lenda de que aquilo tudo já foi mar, que aquilo ali foi o que sobrou. Era um lugar onde os animais feridos entravam para se curar porque o sal era tanto que cicatrizava as feridas deles. Então tudo isso me move muito, sabe? E depois, quando chegou o documentário, Olho Novo, já foi muita sobra disso. Muita coisa que tinha sobrado desse documentário.
Você vai fazer aniversário agora, no dia 1º de agosto, você completa 84 anos. A sua vida, enfim, as demandas aumentaram muito, você continua fazendo shows toda semana. Tem toda essa demanda do filme e agora você vai ser enredo de escola de samba no Rio de Janeiro, da Imperatriz Leopoldinense. Que momento é esse da sua vida? Como é que você traduz tudo isso?
Escolas de samba me convidam desde os anos 1970. Eu sempre disse não. Mas como eu venho dizendo sim para tantas coisas nesses últimos anos, quando eles [Imperatriz Leopoldinense] me procuraram eu disse sim. Eles observaram que eu estava aceitando todas as coisas que estavam me propondo e acharam que seria uma boa hora. Deu certo. Mas que momento é esse? Eu não sei. Isso não é a minha cabeça que determina. A vida está me trazendo para isso e eu estou entendendo que ‘por que não? Por que não?’. E a gente tem que seguir para conseguir o que? Nossa realização. Agora, sobre aniversários, eu não faço festa de aniversário já tem muitos anos. Eu não gosto de dar festa. Todo mundo se diverte, eu fico exausto, sabe? Não é? A gente tem que ficar na porta, leva, traz, abre porta, sabe? Então, eu não faço festa.
Quando você lutava pela sua liberdade há 50 anos, como era o futuro que você imaginava? E que agora você está inserido nele.
Não, eu não imaginava. Eu não imaginava nada. Eu estava lá. Cada vez eu fazia uma coisa e eu não imaginava nada. Eu posso te dizer que está muito mais do que eu esperava. Mas tem aquela história de uma mulher que botou baralho para mim. Eu estava com o Paulinho Mendonça e ela falou que eu ia virar um artista famoso, alguma coisa assim como Carmen Miranda. Eu disse: ‘Ah, tá bom, vamos embora. Essa mulher está louca. Está vendo Carmen Miranda em mim, que eu vou ficar rico’. Eu pobre demais, como é que eu ia ficar rico? Como é que eu ia ganhar dinheiro vendendo artesanato? E aí ela disse o seguinte: ‘Você vai ser muito solicitado. Quanto mais velho você ficar, mais você será solicitado’. E isso que eu estou entendendo que está acontecendo, não é verdade?
Falando da sua carreira como um todo, você se consolidou como uma referência para várias gerações, primeiro nos Secos e Molhados, depois na sua carreira solo, e agora você atinge uma nova geração com o filme Homem com H. Como você enxerga isso e o que está preparado para os próximos anos?
Não faço a menor ideia, já não sei o que está preparado para depois de amanhã. Então, eu não tenho essa preocupação com o futuro, sabe? Eu vou vivendo. Se eu tiver gás, eu estarei aqui. Mas também, na hora que for embora, eu vou-me embora. Tchau, moçada. É um prazer inenarrável, sabe? Mas vou-me embora. Eu não tenho problemas com essa ideia, sabe, de morte. Da única certeza que a gente tem. Sabe, eu tenho aceitação, sim. Não, não, não quero acelerar nada, mas eu tenho aceitação. E aceitação tranquila. Espero chegar na hora e estar tranquilo, assim. Vamos viver enquanto podemos, né? E vamos chegar lá todos. Infelizmente, essa notícia tem que dar. Todos chegaremos lá.
Receba,
semanalmente e sem custos, os destaques mais importantes do ES, do Brasil e do mundo diretamente no seu e-mail.