Atualizado em 18/11/2025 – 15:47
A atuação policial no país não ocorre em um terreno neutro. Cada intervenção estatal é atravessada por expectativas, incentivos e percepções que moldam a conduta do agente, sobretudo no momento crítico da ação. Esse processo, aparentemente simples e muitas vezes automático, quase intuitivo, oculta a existência de um cálculo político incorporado, no qual o policial realiza uma leitura prática, imediata e seletiva sobre o risco institucional, a repercussão social e o valor real dos corpos envolvidos.
Essa avaliação não é fruto somente de uma análise técnica e normativa por parte do policial no momento de agir: é resultado de décadas de aprendizagem institucional* e de discursos de legitimação. Em termos simples: o policial sabe onde pode e onde não pode agir com violência, e ajusta sua conduta conforme o custo político percebido em cada território e diante de cada pessoa.
O contraste entre operações violentas em favelas e a contenção extrema observada em episódios envolvendo pessoas politicamente relevantes, como o caso do ex-deputado Roberto Jefferson, é exemplar. Mesmo após lançar granadas e efetuar disparos de fuzil contra policiais federais, Jefferson foi detido com cautela, respeito e cordialidade*. Não porque a polícia tenha falhado em seu protocolo de ação diante da agressão, mas porque o custo político naquele cenário era altíssimo, podendo gerar uma crise institucional imediata.
Outro exemplo emblemático ocorreu no atendimento de uma ocorrência de violência doméstica envolvendo o empresário Ivan Storel, em um condomínio de luxo em Alphaville, São Paulo. Como registram as imagens, os policiais foram extremamente cautelosos na intervenção, embora o autor estivesse em situação de flagrante delito pela prática de vários crimes. Storel ofendeu e ameaçou os agentes, chamando um deles de “lixo” e “bosta”, além de afirmar que “ganhava R$ 300 mil”, culminando na frase que se tornaria símbolo do episódio: “aqui é Alphaville, mano!”. Todas essas manifestações explícitas de poder econômico e político, rebaixando o trabalhador da segurança pública enquanto classe. O vídeo viralizou nas redes sociais*, evidenciando, de forma induvidosa, que o Estado entrega serviços de forma diferenciada, a depender do CEP.
Nas periferias, em geral, o cenário é o oposto. Nesses espaços, o custo político da violência é estruturalmente baixo. O abandono programado dos Direitos Humanos por parte do Estado, a força do discurso punitivista e a naturalização histórica da intervenção contra corpos vulneráveis fazem desses territórios zonas de supercontrole, onde a força policial é exercida com maior intensidade e menor risco de responsabilização. As mortes (incluindo as de policiais) produzidas pelo Estado nesses espaços raramente geram mobilização institucional ou pressão midiática. Ao contrário: muitas vezes são socialmente legitimadas como demonstração de eficiência. E a sociedade adere a essas práticas violadoras da Constituição. Nesses espaços, a morte não figura como mera possibilidade, mas como probabilidade.
Quando se afirma que esse comportamento é ensinado ao trabalhador da segurança pública, basta lembrarmos as declarações públicas do então comandante da ROTA de São Paulo, Ricardo Araújo. Ele afirmou que “se o policial for abordar uma pessoa na periferia da mesma forma que abordaria uma pessoa aqui nos Jardins, vai ter dificuldade… Ele tem que se adaptar àquele meio”*. A fala sintetiza explicitamente a lógica de diferenciação territorial que estrutura a prática policial no país: não se trata apenas de variações individuais de conduta, mas de uma pedagogia institucional que orienta intervenções distintas conforme o território e o corpo abordado.
Em resumo: o policial é fração de classe que atende aos comandos estatais, sendo instrumentalizado ideologicamente para a manutenção do controle popular pelo Estado. Sempre é bom lembrar que a seletividade não é um defeito do sistema penal – ela é sua essência. A seleção penal mantém a desigualdade, garante a disciplina e o controle da força de trabalho, assegura a circulação de mercadorias e produz os “inimigos internos”.
Desta forma, o custo político é diferencialmente distribuído. Em bairros nobres, uma intervenção violenta é imediatamente problematizada. Na periferia, a mesma ação pode ser invisibilizada, normalizada ou até apoiada*. As frações de classe fagocitam-se permanentemente diante do bombardeio cultural hegemônico. A seletividade não é acidental: ela é parte da própria lógica intervencionista, uma tecnologia de controle que opera conforme a hierarquia moral das vidas.
Dentro dessa engrenagem, a polícia age politicamente de acordo com os incentivos do sistema, e não apenas com as normas jurídicas. O Direito é circunstancial. O uso da força não responde somente ao risco real da situação, mas ao risco político da repercussão. É por isso que o Estado é mais letal, majoritariamente, onde neutralizar é permitido — e gentil onde preservar vidas é necessário.
Entender a letalidade policial no Brasil exige, portanto, compreender essa cartografia desigual da vida. Um Estado que abandonou a pauta dos direitos fundamentais de algumas pessoas produz um ambiente no qual a morte torna-se politicamente útil em determinados locais. É essa assimetria que revela a dimensão mais profunda do cálculo político da intervenção policial neste país latino-americano.
O cenário é o pior possível: a Esquerda Punitiva avança em campo fértil, ajudando a regar com sangue essa quadra histórica*.
O trabalhador da segurança, escudeiro dos politicamente responsáveis por essas violações, acaba sendo tragado por esse mandato policial desenhado há décadas no Direito Penal Subterrâneo*.
Somente ao reconhecer essa lógica seletiva, e enfrentar as estruturas que a alimentam, será possível construir um modelo de segurança de direitos que atue com equidade e legalidade em todos os territórios e para todos os corpos.
Referências:
*A teoria da Associação Diferencial é tratada por Edwin Sutherland e Donald R. Cressey no livro “Principles of Criminology”, lançado nos anos 40.
*https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/10/23/roberto-jefferson-ataca-policiais-federais-com-granadas-e-tiros-de-fuzil-e-se-entrega-apos-8-horas-desrespeitando-ordem-do-stf.ghtml
*https://www.estadao.com.br/sao-paulo/abordagem-nos-jardins-tem-de-ser-diferente-da-periferia-diz-novo-comandante-da-rota/
*Maria Lúcia Karam trata do tema em sua obra “A “esquerda Punitiva – Vinte e Cinco Anos Depois”, lançada em 2021.
*Zaffaroni trata desse assunto no livro “Em Busca das Penas Perdidas: A Perda de Legitimidade do Sistema Penal”, lançado no Brasil em 1991.

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