Atualizado em 26/09/2025 – 15:46
Queria comprar flores em Madrid e sair andando pela rua com um pequeno buquê de pétalas que mudam o nome em outra língua. Entrar em um supermercado sem precisar converter as moedas, e me lembrar de levar bolsa de casa pra carregar as coisas adquiridas. Queria comprar flores em Madrid e oferecê-las numa sala pouco espaçosa, de varanda estreita e preço avantajado. Desses lugares com a vizinhança que, em dias quentes, acolhe mais condescendentes ou já vencidos, aos viajantes.
A Espanha obriga a sinalização das residências com fins turísticos. Marca-se o turista, colocam nele uma sinalização – como se muitos de nós já não carregássemos intrínseco algo muito particular do nosso país/ língua de origem. A vizinhança, quando mais conservadora, reconhece aquele outro já sob uma identidade subjugada de grupo. Esse olhar se repete em outras lugares da comunicação. Daí, embora haja comidas que, facilmente, nos convidam a um tipo de comunhão com aquela cultura, a gente fica resignado à identidade de turista – que convém também incorporar como item de segurança: lembrar que a gente não é dali, manter o protocolo de levar cópia do passaporte onde estiver, conferir a pochete a cada hora e desconfiar de cortesias demasiadas. Esse destaque ao turista, porém, diverge do modo como os espanhóis lidam com os imigrantes residentes. A força de trabalho que abastece o bairro é desdenhada e ignorada. A diversidade se mantém não legitimada na terra dos colonizadores, e nisto não há nenhuma novidade.
A armadilha, porém, reside também nesta vizinhança. Seria um equívoco tachar todos os espanhóis a partir de um bairro um pouco mais hostil em dias frios. Seria como tachar todos os turistas como grupo: isso seria não permitir ser atravessado pelo Outro enquanto indivíduo, enquanto cultura. Encontrei ótimas pessoas em Madrid que, embora se reúnam com periodicidade para pensar políticas públicas voltadas a mulheres imigrantes em vulnerabilidade, talvez também estejam de passagem.
Queria comprar flores em Madrid, mas isso seria renunciar ao escudo dúbio que é ser turista. Se turista, posso até receber um sorriso amarelo ou algum grito hostil, mas se inscreve no meu corpo um alerta que mantém a civilidade na acolhida: consumo, pago e parto. Se cidadã brasileira que compra flores para a sua casa em Madrid, ocupo a vaga de emprego de algum espanhol, produzo muito lixo e possivelmente estou aliada a outras pessoas – também estrangeiras – que pretendem pôr em risco a moral e os bons costumes do colonizador.
Queria a ideia romântica das flores em Madrid e de uma noite em Paris, mas é difícil sustentar esse imaginário cândido quando a realidade, através de diversas ações de cidadãos muito afetuosos à monarquia, escancara a hegemonia de poder que se traduz em xenofobia nesta parte do mundo. As belezas das cidades espanholas são inquestionáveis, mas a gente não pode esquecer da História que se inscreve nestes lugares, os massacres e as violências que ainda se presentificam, agora em outra ordem.
O poeta e dramaturgo Federico García Lorca, assassinado pelas forças franquistas durante a Guerra Civil Espanhola, tem uma peça que se chama El maleficio de la mariposa, ele conta a história de insetos que viviam na relva e neste lugar amor era hereditário; ali, nenhum inseto conhecia o amor romântico. Até que um deles encontra um caderno de versos deixado por um poeta. Depois de ler, o inseto começa a acreditar nisso de “yo te amo mujer imposible”. No prólogo, o autor adverte aos poetas que não deixem livros de poesia esquecidos pela relva. Talvez a ideia de comprar flores em Madrid também esteja estampada em algum desses livros que encontramos pelo caminho. A cidade, no entanto, depressa se mostra oposta ao afeto e à permanência vislumbrados até então. Queria comprar flores em Madrid, mas é Vitória que acolhe, numa mesa escura, o paninho com bicos feito pela minha avó. Em cima dele, bem no centro, um jarro guarda em redoma a beleza do sonho, efêmera e delicada diante do tempo. Queria comprar flores em Madrid, mas é o vento de Vitória que exige mãos que alcancem, ao mesmo tempo, o buquê e a saia. Queria comprar flores em Madrid, mas é em Vitória que o vento me desnuda enquanto reconhece, meu corpo, parte da cidade.

Receba, semanalmente e sem custos, os destaques mais importantes do ES diretamente no seu e-mail.