Atualizado em 16/09/2025 – 14:20
A memória é da matéria do inesquecível, mas sem se fartar em lembrar; tem a função preventiva de evitar repetições trágicas, carrega a beleza dos bons exemplos e a dor do esquecido, do violentamente reiterado.
O esquecimento caminha ao contrário, ocultando-se nos becos e vielas, escondendo-se sob escombros. Os esquecidos e os que deles se esqueceram duelam sob a pressão do apagamento, que tem mão dupla.
Em um sentido, apaga-se o que foi feito em decorrência da relação de forças entre vítima e algoz. No outro, turva-se a memória para que vítima e algoz se confundam ao ponto de falaciosamente se inverterem.
É o caso das anistias brasileiras. De tanto esquecer e perdoar, sucessivos golpes foram dados, a maioria bem-sucedida na perspectiva dos golpistas. Os golpistas se repetem ao ponto de retornarem e tentarem novamente, muitas vezes logrando êxito na missão quando não parados na primeira tentativa.
No Brasil, cada ameaça de ruptura democrática soa como déjà vu. Desde o Império, conspiradores raramente enfrentaram consequências. Golpes frustrados ou exitosos são seguidos de anistias generosas, promoções ou mesmo presidências.
O país parece viver sob o signo do eterno retorno dos golpistas impunes. Hermes da Fonseca e Tasso Fragoso, ainda jovens oficiais, ensaiaram movimentos contra governos civis antes de 1930; nenhum castigo. Pelo contrário, viraram presidente ou chefe da junta que entregou o poder a Getúlio.
Na década de 1930, Góis Monteiro e Dutra ajudaram a derrubar presidentes e depois chefiaram o Estado Novo ou a República de 1946.
Em 1964, os tenentes reciclados assumiram o poder e governaram por 21 anos. Nos anos 1970, generais linha-dura como Sylvio Frota tentavam barrar a abertura, enquanto jovens oficiais como Augusto Heleno assistiam de perto. Jair Bolsonaro, formado nesse caldo cultural, exalta torturadores como Brilhante Ustra e incorpora esse ethos à política civil.
Walter Benjamin nos ensinou que é preciso escovar a história a contrapelo: narrar pela perspectiva dos vencidos. Ao contrário da narrativa dos vencedores, que pinta os golpes como revoluções redentoras, a perspectiva dos derrotados revela o padrão: impunidade → retorno → novo golpe.
Hannah Arendt alertou que o poder sobrevive de enganar, e Paul Ricoeur mostrou que memória e narrativa são inseparáveis. Se não nomeamos os crimes, naturalizamos a sua repetição. A ADPF 153, julgada pelo STF em 2010, manteve intocada a Lei da Anistia de 1979. Era a chance de romper o ciclo. Não rompemos. Ao contrário, consolidamos a narrativa de reconciliação e progresso, ignorando os corpos pelo caminho. Resultado: práticas autoritárias, violência policial e ameaças golpistas seguem como se fossem contingências normais do Estado brasileiro.
A discussão se deu em torno do art. 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979. Por meio da ADPF proposta pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, ambicionou-se a declaração de não recebimento do citado parágrafo pela Constituição, uma vez que a concessão da anistia para crimes políticos seria estendida a todos que, no período assinalado pela lei, tenham cometido crimes conexos, ou seja, crimes de qualquer natureza que sejam relacionados a crimes com motivação política.
Na ocasião do julgamento da ADPF 153 pelo STF, o Brasil poderia ter dado um importante passo rumo à rememoração do seu passado. No entanto, a Corte Suprema impediu a revisão da Lei da Anistia, que veda o julgamento dos crimes cometidos nos anos em que vigia o regime comandado pelos militares, notadamente no período compreendido entre 12 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, condenando a sociedade brasileira a um eterno vir a ser.
Em texto escrito ainda em 2017, junto ao meu orientador do mestrado (Professor Nelson Camatta Moreira), analisamos o julgamento, pelo STF, da ADPF 153, que visava apontar a inconstitucionalidade da ampla anistia dada aos militares pós-ditadura civil-militar. No entanto, o Supremo, por maioria de votos, resolveu deixar tudo como estava.
Nesse sentido, a anistia ampla, geral e irrestrita se deu muito mais para apagar o passado das atrocidades cometidas pela força bruta dos militares e para jogar na lata de lixo da história os atos de resistência ao arbítrio perpetrado pelos militantes, notadamente incomparáveis entre si.
Evidencia-se, entretanto, que não se pode afirmar ser a falta de memória o principal responsável pela violência que assola nosso país. Todavia, ao tentar jogar o passado para debaixo do tapete, repetindo as práticas que nos levaram à violação de direitos humanos e não permitindo à sociedade que debata na arena pública os efeitos pretéritos, presentes e futuros do regime ditatorial, o STF facilita o retorno do recalcado, daquilo que foi reprimido justamente por não ter sido posto para fora.
No mesmo texto, fizemos o seguinte alerta:
O remédio contra a anistia não foi ministrado no Brasil, podendo ter contribuído para a eleição à Presidência da República de um militar que já indicou para seu ministério outros oito militares, prática sem precedentes na recente história democrática do país. O candidato eleito defende a tortura, bem como um dos aludidos supostos torturadores, o general Brilhante Ustra. Ora, embora o presente espaço seja curto para tal afirmação, evidencia-se como sintoma do retorno do recalque ditatorial a eleição de um representante que admira e elogia publicamente aquele período.
Quando generais da reserva ou influenciadores civis repetem discursos de tutela militar, não estão inovando; estão revivendo uma tradição. Heleno, intendente de Frota, e Bolsonaro, admirador de Ustra, simbolizam essa genealogia.
Não há memória crítica sem responsabilização. E não haverá democracia sólida sem enfrentar o passado autoritário. É hora de fazer o que Benjamin propôs: escovar a história a contrapelo. Nomear os golpistas, lembrar suas tentativas, suas vitórias e, sobretudo, suas impunidades. Só assim a história deixa de ser terreno fértil para novas catástrofes. Sem dever de memória, não há dever de justiça — e sem dever de justiça não há democracia que resista.
O Brasil não é um país condenado ao eterno retorno dos golpistas. Mas, para sair desse ciclo, precisamos parar de tratá-los como estadistas e começar a tratá-los como o que são: conspiradores contra a democracia.
No mais recente julgamento pelo STF, o Supremo encontrou-se com sua vocação constitucional e atuou para proteger o Estado Democrático de Direito. Além de apontar severa punição para os golpistas de hoje, mandou forte recado para os impunes do passado e, sobretudo, para os do futuro: nem esquecimento, nem perdão!

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