Atualizado em 08/08/2025 – 17:40
Em carta a Luis Maurício, o infante Carlos Drummond de Andrade discorre sobre linguagem, memória, tempo, infância, enfim, sobre a vida. Sua linguagem poética, única e encantadora, apresenta mistérios interessantes, dignos de repetidas leituras e longas reflexões.
A frase que intitula esta coluna me acompanha há anos, e sempre me impele à reflexão. É notável, sobretudo no terreno da política, o uso das palavras, notadamente aquelas que carregam significados fortes, marcantes, poderosos. Há, também, as palavras pejorativas, outrora associadas a grupos privilegiados, mas que, com o tempo, foram substituídas por termos mais suaves, asseados, discretos o bastante para ocultar o que de fato se quer dizer ou fazer. São nomes alterados, formatos modificados, bordões singelamente construídos para confundir, iludir, conduzir ao erro.
Na política brasileira, criou-se o termo tucanar, que significa dar nova roupagem a práticas comezinhas. O uso do verbo tem origem nas malandragens semânticas promovidas pela imprensa burguesa no Brasil, historicamente alinhada ao espectro político da direita. Quando envolvia políticos do PSDB, tal imprensa tratava escândalos, erros e demais patacoadas com meticulosa escolha de palavras suavizantes: sujeitos ocultos, manchetes rarefeitas, eufemismos em profusão.
Já quanto aos escândalos e erros atribuídos a políticos de esquerda, o tratamento é o oposto: apelidos pejorativos, reiteradas negativas, manchetes repetidas, elementos gráficos, cores e sons. Tudo a serviço de uma semiótica do linchamento.
Enquanto os processos midiáticos envolvendo o Partido dos Trabalhadores foram batizados com nomes próprios (mensalão, lava-jato, petrolão), os escândalos protagonizados por partidos de direita raramente ganharam tal publicidade. Vale lembrar que o partido com o maior número de investigados na famigerada operação Lava Jato foi o PP. No entanto, o esforço semântico da mídia burguesa colou o rótulo no PT, partido que, ao menos em tese, representa a classe trabalhadora.
É uma questão de classe, mas é também uma questão de raça. Em uma das obras mais importantes do pensamento negro, O Contrato Racial, Charles Mills aponta a construção global de uma forma de governo velada, cujo fim não declarado é manter o poder global nas mãos dos brancos. Todo branco, mesmo aquele que ignora sua posição, é beneficiário deste projeto. Escorada na necessidade de manter (e, por vezes, ampliar) as desigualdades raciais e sociais brasileiras, a supremacia branca tem na mídia sua porta-voz, naturalizando a batalha semântica e tornando-a palatável.
Nos últimos anos, assistimos ao renascer de bordões de origem fascista: “Deus, Pátria e Família”, por exemplo, oriundo do fascismo italiano e resgatado pelos integralistas brasileiros — derrotados, é verdade, na tétrica revoada das galinhas verdes, mas jamais extintos. “Só o trabalho liberta” estava inscrito nos campos de concentração da Alemanha nazista e, hoje, ressurge pela boca de quem herdou fortunas explorando o trabalho alheio. Os supremacistas da Ku Klux Klan pregavam que “só Jesus salva”, lema que também foi reciclado e incorporado por políticos extremistas disfarçados de pastores.
No meu sentir, porém, a disputa mais sutil se dá em torno de conceitos muito caros à coletividade: democracia e liberdade. Na boca de políticos autoritários, defensores de notórios torturadores da ditadura civil-militar, democracia passou a significar o direito de perdoar, sem pudor, os algozes da Nação. Em seus atos e palavras, liberdade converteu-se em licença para a violência real e simbólica: para destruir, desinformar, desacreditar.
Não é difícil entrever os objetivos da deturpação das palavras: aquilo que muito significa, acaba por nada significar. E então, vemos aspirantes a ditadores clamando por um “pacto pela paz” após tentarem subjugar a já mambembe democracia brasileira.
George Orwell — ele mesmo, tantas vezes deturpado — concebeu, em 1984, a novilíngua (ou novafala, conforme a tradução) para denunciar os ardis semânticos dos autoritários. Ao dar novos sentidos às velhas palavras, manipulam-se consciências, distorcem-se os fatos, e a verdade torna-se aquilo que a força bruta decreta ser.
Ao que parece, as palavras seguem, hoje, servas de estranha majestade. Será preciso esforço hercúleo do campo verdadeiramente democrático para defender os valores, princípios e deveres inscritos na Constituição da República Federativa do Brasil ainda prenhe de palavras que ainda tateiam sua própria efetivação.

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